segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Os parvos

Hoje entrei no comboio, e, não sendo novidade nenhuma, estava tão cheio que parecíamos sardinhas em lata mais uma vez. Como sempre, fiquei de pé, para poder dar lugar a quem precise mais.
Infelizmente sou só eu.
As pessoas não se mexem para quem está fora entrar. Não se mexem absolutamente nada. Quem vai sair na próxima saída ainda tem a lata de reclamar por não o ou a deixarem sair... Porque esta é a sua paragem para sair. Isso é que importa. Deixar outros entrar, não.
Claro que a culpa não é deles. Em parte é da CP. Em parte da educação que tiveram. Elas cheias de maquilhagem, cheiram a perfumes caros. Eles porcos e feios, cheiram a transpiração. Metem nojo. Elas por parecerem uma coisa que não são. Eles por serem exactamente o que parecem.
E se alguém se levanta, vão a correr para o seu lugar de direito. Estão cansados da labuta do dia. Vazios de maneiras e modos. São porcos nojentos que só olham para o seu umbigo sujo e vazio.
Hão de morrer sós. É só o que peço para eles...

terça-feira, 24 de outubro de 2017

A senhora que lia

Senta-se à minha frente uma senhora com alguma idade. Nunca me calham novos, mas não me importo muito. Felizmente os mais experientes sabem dar valor ao silêncio. Lê um livro fininho e pequeno. Pôs um risco preto nos olhos e um bordô, mas discreto. Notam-se as várias rugas que tem na cara.
Sem querer encosto o meu pé ao dela e peço desculpa, mas ela nada diz.
Muitos anos e muitas pessoas passaram na vida desta senhora. Umas mais simpáticas, outras menos. Aprendeu, com a vida, que infelizmente todas as pessoas são más. Não há como fugir disso. Não é um desculpe agora que vai perdoar uma coisa horrível daqui a uns tempos. Como o irmão. Sempre tão respeitador, tão simpático, tão bem ensinado. Que do nada, perdeu o juízo, fugiu e... Bem, não se pode falar disso. Foi preso em Itália, e por lá deverá acabar os seus dias. O irmão que era cavalheiro e abria a porta, que afastava a cadeira... Talvez seja irónico que passe o resto dos dias em Itália, pais do romance. Ela nunca foi vê-lo. Depois de saber todo o mal que ele fez a tantas mulheres, mais novas e mais velhas. Ela não quer saber. Agarra-se ao seu livro, e continua a ler. Como se o tempo a fizesse esquecer que um dia teve um irmão. Como se as letras a fizessem mergulhar num mundo bem melhor. Que ela sabe que não é...

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A senhora do cabelo rapado

Não escolho o lugar antes de me sentar. Só preciso de espaço. Sento me perto de uma senhora com o cabelo curtinho. Rapado.
Será?
Não sei o que aconteceu. Não sei o que se passou. Não sei se escreva sobre o sofrimento de um cancro, do qual recuperou. Em que optou pelo cabelo curtíssimo, ainda que já comece a fazer frio. Não tem cara de nova, mas nunca sabemos o que esta merda faz as pessoas. 60 anos? Menos? Mais? Vai elegantemente bem vestida de creme, com sabrinas escuras. Com umas pérolas, como o quadro do Rembrandt, maquilhada. Não muito, só um pouquinho nos olhos. Podia contar os horrores que tem sofrido, as dores que tem passado. Mas não sei. Ouço falar, ouço contar. Mas não sei. A senhora no banco de trás fala de Jesus. Irónico, não é?!
Irónico quando não se cala com a conversa quando pode ter alguém à frente que acredita mais ou não acredita de todo.
Queria escrever hoje sobre uma senhora que gosta de ter o cabelo bem curto, apesar de já ser branco. Que sempre o usou assim, desde pequena. Desde que o pai lhe dizia que o cabelo curto não é para meninas. Mas era assim que se sentia bem! Curto curto. Que tentou deixar o cabelo crescer para casar, mas que o gosto e o hábito falaram mais alto. Que, como mulher independente que é, que veio a Lisboa tratar da sua vida. Consultas de rotina, compras, ou até mesmo trabalhar! Era esta a história que queria que soubesse, que lessem. Mas não sei. Não quero olhar, porque não quero imaginar o sofrimento. Apenas lhe desejo coisas boas, seja qual for a sua história.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

O velho teimoso

Com o comboio apinhado, sentei-me onde havia lugar. Apanhei um grupo de três pessoas, duas senhoras e um senhor. Falava-se do fogo, e das chamas. É um prato do dia. Quer queiramos esquecê-lo, ele lembra-se-nos pelo cheiro que nos entre pelas narinas a dentro, pelos olhos adentro.
Mas o senhor continua e insiste em falar sobre ele. Sobre quando era mais novo e, na tropa, cozinhava massa com atum.
As senhoras olham para o infinito e comentam que nem os mais velhos se lembram de fogos nesta altura do ano.
E o senhor insiste nas suas conversas do passado, nas suas teorias antigas.
Enquanto que as senhoras comentam que seja onde for, o cheiro é imenso. Se perguntam de onde será. Como terá acontecido!
Não gosto de homens, velhos, que só querem falar sobre eles. Que impõem a conversa deles, a mentalidade deles. Tenta em vão fazer piadinhas, mas as senhoras contemplam tristemente o vazio e falam de que estamos velhos e a deixar partir os novos.
E o velho diz coisas sem nexo, que não me lembro nem importam.
Ouvem-me ao telefone, e perguntam-me onde já chegou o fogo. Grandes ou pequenos, velhos os novos, somos todos iguais perante estás situações.
Menos o velho. Que fala de coisas estranhas, coisas antigas. Coisas velhas.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

O senhor à janela

Ao lado da janela, mesmo à minha frente, está um senhor sentado, que diz vir de França. Cheira mal nos nossos bancos. Não sei se dele se do amigo que encontrou e a quem contou um pouco da sua história. Adormece, do cansaço do dia, vai para a última paragem de todas. Depois de um voo de pelo menos duas horas, faz mais duas para ver a família. Foi em trabalho. Ficou a semana toda, mas deixou o negócio fechado.
Gosta de ir a França. Tirando a parte de estar longe da família. Fá-lo recordar as memórias que tinha de mais novo. As histórias que os pais, emigrantes exactamente​ em França, contavam, de trabalharem duro, de trabalharem muito. Nada mudou desde esses dias para hoje. De maneira diferente, ele, o senhor que dormita de janela em janela, também trabalha muito. Hoje somos mais informados e viajamos mais rápido. Mas nem por isso o senhor cansado acorda do seu sono, tranquilo, porém, por garantir a continuidade do seu pequeno negócio. Para garantir que nada falta à família.

O homem de preto

Na coxia de um dos bancos de três, vai um homem quase careca. Todo vestido de preto. Chama-se Mário. Não há de ter mais de 50 anos, mas senta-se como se todo um cansaço se apoderasse dele e ainda hoje é segunda. Olha para mim. Não sou fã de cruzar olhares. Mas o Mário olha uma e outra vez. Talvez eu não entenda.
O Mário tem 2 filhos, um rapaz e uma rapariga. Não importa saber de que idades são, nem Mário quer lembrar-se. As saudades custam tanto, que ao ver-me, em pé, num comboio cheio de lugares, Mário questiona-se se a sua filha, no Reino Unido, também anda tanto tempo de comboio. Se passa dias de pé, para outros se poderem sentar. Tem a certeza que sim. Foi essa a educação que lhe deu, de servir primeiro os outros. Cruza os braços de revolta, e conta os minutos para o Natal. O filho, na Austrália, não vem assim tantas vezes. Será que também passa muito tempo de pé nos transportes?! Sai na Azambuja e já chega a casa tarde. Hoje não é dia da chamada semanal com os netos, mas bem que podia ser, para animar um dia como segunda-feira. Semi-cerra os olhos, nos óculos pequeninos, lutando contra a vontade de dormir. Lutando contra a vontade de chegar a casa. Um dia atrás do outro, até ao Natal.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

A rapariga do saco vermelho

Não devia ter mais do que trinta anos. Levava um saco vermelho, enorme, em cima das pernas. Escrevinhava veloz e desenfreadamente naquele teclado do telemóvel, coisas que nunca ninguém podia imaginar. Não era bonita nem feia, mas tinha uns olhos que agarravam a alma e prendiam o olhar por longos minutos. Não que o fizesse muita vez. Segurava o saco vermelho com força e esperava ansiosamente o revisor. Para que ele não desse pelo cheiro. Para que ninguém reparasse naquele cheiro nauseabundo a carne humana.
Tinha separado todos os bocadinhos e etiquetado por zonas. Como solicitado. Odiava ter de entregar este tipo de encomendas, especialmente usar transportes públicos para isso. Mas tentava transparecer serenidade, nos olhos avelã e cabelos pretos.
Sentia os pequenos bocados a pesarem-lhe nas pernas, mas nem assim a consciência. E recostou a cabeça no banco, na esperança de descansar a vista, até que chegasse e o cliente a esperasse como combinado. E chegou. Lá estava ele, com outra mala vermelha, igual, cheia de notas meticulosamente contadas, novas, cheirosas. E seguiu o seu caminho.